Aliança de raças, de cores, junção de peles, de religiões. A primeira noite da Semana da Consciência Negra, no Centro de Cultura Negra, foi marcada pelo sincretismo cultural. Após a Missa dos Quilombos e da apresentação do Grupo de Marabaixo do Pavão, o público se emocionou com as atrações vindas da Guiana Francesa, Makinety, e do Suriname, Okobua. O criolês não foi barreira para fazer o público levantar. A magia dos tambores uniu povos.
Muito axé foi o que pediram os oito músicos e as duas dançarinas da Guiana Francesa ao subiram ao palco às 22h. A sintonia entre os instrumentos de percussão e as vozes fez todos caírem na batuqueirada e tentar gingar os quadris como as crioulas. Makinety foi premiado pelo Conselho Regional da Guiana Francesa (instituição equivalente ao governo do Estado) como melhor grupo de música tradicional de 2011 do país.
Apinti
Assim é denominada a cerimônia de chamamento dos ancestrais que o grupo do Suriname, Okobua, apresentou, logo após os guianenses. Uma mistura de rituais de incorporação de entidades, do poder das forças da natureza se manifestando no corpo humano vivo, fortalecendo de energia os integrantes, que presentearam o público com uma mágica guerra entre tambores, representando a luta entre o bem e o mal.
O início da apresentação já surpreendeu. Oito homens entrelaçados uns aos outros formando um paredão, uma única matéria, uma irmandade, que se transformam em uma nova energia, a partir do toque dos tambores.
Emitindo sons estranhos e falando uma língua incompreensível, para os espectadores, o grupo iniciou uma dança com movimentos desorientados (para os olhos do público), intercalando momentos de união e solos. Eles estavam evocando seus ancestrais, rendendo a eles obediência, pedindo passagem e permissão para as entidades tomarem seus corpos e assumirem seus lugares nos tambores.
Aproximadamente 20 minutos se passaram até que a primeira entidade incorporou um dos integrantes. Ele se joga ao chão, tremendo e, ao levantar, domina o tambor, implicando com os demais músicos, desafiando-os para uma luta de sons. Aos poucos todo o grupo está incorporado e a guerra entre o bem o mal é travada. Nada de contato físico, a batalha consiste em quem irá superar o outro nas batidas dos tambores, em qual será o ritmo capaz de aniquilar o opositor. Os tambores falam, conversam entre si. O confronto das entidades está declarada.
A multidão concentrada no Centro de Cultura Negra, silenciada pela enigmática apresentação, acompanhava atenta a cada detalhe, tentando entender os movimentos repletos de simbologia, que retrata a identidade dos povos interioranos do Suriname.
A engenheira florestal paulistana Júlia Stuchi, em Macapá há apenas seis meses, estava encantada.
"É tudo tão maravilhoso. E estou falando de tudo, desde a Missa dos Quilombos. Para nós que somos de fora, presenciar uma expressão cultural tão forte é magnífico. Antes de vir pra cá soube que a negritude aqui era forte, mas não sabia a dimensão disso e essa integração com outros povos tornou, para mim, a noite mais repleta de encantos", disse.
Daniel Ho Kong King, presidente da Rede de Difusão Artística da Amazônia (Rediarta), que trouxe os grupos estrangeiros para o Amapá, em parceria com o governo o Estado, explica o sentido da guerra entre tambores.
"Os vários tambores representam as constantes lutas do povo da África em busca de trégua, de igualdade, de paz. São povos irmãos que lutam entre si, tendo como justificativa as diferenças de pensamento, de religiões, de conceitos de vida. Por isso a representatividade da luta entre o bem e o mal em busca de aliança".
Depois de uma longa e cansativa briga, os espíritos negros, vendo-se aniquilados aos poucos, resolvem unir forças e atacam de uma só vez o corpo de um dos dois únicos sobreviventes. O músico recebe as inúmeras entidades e, descontrolado, se joga ao chão, tremendo, dominado, até que a entidade do bem toma posse de um grande tambor. Com batidas fortes, o tambor é colocado em cima do cavalo (pessoa que recebe a entidade), que aos poucos vai retomando a si.
Esse momento final representa a vitória do bem, e o imenso tambor, coberto com um manto, é o símbolo do resgate da união entre os povos. Todos os tambores em um único, da união de uma África tão sofrida e carente de paz, da força sobrenatural de um povo guerreiro, de pela preta, que sobrevive a vida, ainda que seja preciso guerrear com todas as mazelas.
O grupo Okobua termina o show sob os aplausos da plateia. Muitos não entenderam nada, como dona Maria Araújo, 80 anos, mas a magia cênica da apresentação encantou por si só.
Vinda dos grupos para o Amapá
A participação dos grupos da Guiana Francesa e do Suriname faz parte de um processo de intensificação de intercâmbio cultural que o governo do Estado está empenhado em celebrar com os países componentes do Platô das Guianas. A meta é se estabelecer uma agenda cultural anual na qual o Amapá seja integrado às atividades desses países e vive-versa.
O Amapá deu o primeiro passo para essa iniciativa, e os guianenses já sinalizaram a participação de artistas amapaenses em ações de suas cidades.
Nesta segunda-feira, 21, à noite a programação da Semana da Consciência Negra continua com apresentação do Candomblé de Angola. Às 15h tem Seminário e às 20h apresentação de Candomblé, no Centro de Cultura Negra.
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